O que é ‘família’?
Não vamos aqui entrar nas origens históricas, todo mundo já sabe que a palavra e o sentido vieram do Império Romano, etc.etc.etc… Quero falar de hoje, o que se entende por ‘família’.
Já abandonamos há muito tempo o conceito tradicional de família (papai, mamãe, filhinho/s). O IBGE (2010) já reconheceu 19 tipos diferentes de famílias: heterossexuais, homossexuais, com ou sem filhos, irmãos morando juntos, monoparentais, avó/s e neto(a)/s, enfim.
O que define uma família são os vínculos, biológicos ou afetivos. Os Tribunais Superiores também reconhecem os vínculos afetivos entre pais e filhos.
Em todos os grupos humanos, a família constitui-se no primordial veículo de transmissão de cultura da sociedade, e responsável pelo desenvolvimento psíquico dos indivíduos.
Mas ao longo da história da humanidade, o modelo de família vem se alterando, e a ambição de restaurar a família em seus moldes tradicionais depara-se com o relaxamento dos vínculos e o declínio social da figura paterna: aparecem, então novos vínculos familiares, formados por meio-irmãos de diversas uniões, modos artificiais de procriação, pais solteiros e, sobretudo, a nova posição da mulher como chefe (única) de família – seja solteira, separada, divorciada ou viúva, ou ainda como opção de “produção independente” (ABREU, A., III Congresso Ibero-Americano de Psicologia Jurídica, 1999).
O Judiciário, o Direito de Família, os operadores do Direito (juízes, advogados, promotores) e os psicólogos (clínicos e jurídicos) devem estar atentos e acompanhar essas transformações.
A motivação para a escolha do(a) parceiro(a) é, em geral, inconsciente.
Isso significa que dificilmente as pessoas conseguem apresentar razões consistentes acerca do por que aquela pessoa foi escolhida, no meio de milhões de outras.
Raramente fogem de respostas banais, quando, no máximo, exaltam as boas qualidades do indivíduo amado.
Mas esses conteúdos inconscientes, originários dos relacionamentos da infância, são os que realmente atuam como ímã para a eleição do parceiro e o estabelecimento e manutenção do contrato secreto do casamento.
Uma vez que apresentam padrões repetitivos de comportamento derivados das primeiras etapas do desenvolvimento com as figuras parentais, sejam elas os pais ou as pessoas significativas que cuidaram dessas pessoas quando eram crianças (DIAS, 1990).
Para Nery (2003), de abordagem psicodramatista, em sua obra Vínculo e afetividade – caminhos das relações humanas, a matriz de identidade depende dos vínculos que ela estabelece com o(s) outro(s), no primeiro grupo social na vida do ser humano, de modo que não é somente a criança que se vincula, mas esse(s) outro(s) também complementará(ão) seus papéis ou imporá(ão) uma complementação de papéis a ela.
E todos os vínculos são permeados pela afetividade. Para a autora, o “(…) aprendizado emocional resulta, pois, na nossa modalidade vincular afetiva com o mundo, que se constituirá no desempenho dos nossos papéis em cada vínculo que estabelecemos” (p. 21).
E a afetividade determinará a qualidade dos vínculos, que podem levar ao desenvolvimento do ser humano, ou a estados patológicos (e até autodestrutivos).
A referida autora (2003, cit.) menciona também que a qualidade dos vínculos, determinada pelas diversas cargas afetivas (positivas ou negativas) influenciam na formação de papéis complementares internos (formados pelas crenças básicas do indivíduo, valores, autoconceito) que, se forem patológicas, causam angústias e sofrimentos e resultam no estabelecimento de vinculações patológicas com o(s) outro(s); por sua vez, o papel complementar interno positivo favorece o estabelecimento de vinculações afetivas saudáveis com o(s) outro(s).
“A conservação de conduta ainda está relacionada à construção da subjetividade e à assunção de ‘identidades’, advindas dos aspectos internalizados dos vínculos compostos de lógicas afetivas de conduta” (NERY, 2003, cit., p. 26).
Miljkovitch (2012) postula, em seu livro Os fundamentos da relação afetiva, que “a dinâmica amorosa do adulto, com os meios que ele aciona para estabelecer uma relação, é determinada, em parte, por aquilo que aprendeu nas suas experiências precoces” (p. XIX – Introdução).
Assim, a autora entende que a pessoa é mais influenciada pelas representações que ficaram dos acontecimentos, e nem tanto pelos acontecimentos em si. E que um mesmo acontecimento pode ter um significado e um impacto muito diferentes, conforme o momento que a pessoa esteja vivenciando.
A referida autora (2012, cit., p. 10-11) entende que o que o indivíduo vive em sua relação a dois pode atualizar sentimentos ligados a situações passadas, conforme a qualidade dos laços afetivos com seus pais.
Se estes, nas situações de estresse, novos desafios da criança, ofereceram oportunidades de tranquilidade e confiança no filho, na idade adulta este indivíduo construirá um modelo de trocas afetivas saudáveis e positivas com o(s) outro(s).
Mas, se esses pais passaram a sensação de insegurança, de hostilidade ou de desconfiança na capacidade do filho, este reagirá de forma patológica a qualquer atitude do(s) outro(s) em suas relações amorosas (o indivíduo interpretará a atitude do(s) outro(s) conforme o modelo de desprezo ou de hostilidade que os pais lhe demonstraram), mesmo que essa interpretação não tenha nenhuma fundamentação fática.
A escolha inconsciente do parceiro pressupõe um ajuste de duas personalidades, como se cada um dos parceiros procurasse no outro aspectos que não conseguiu desenvolver em si mesmo ou, por outro lado, justamente aquela dificuldade que também possui, para ambos se protegerem do objeto temido.
Com isso, ocorre um encaixe desses aspectos doentios de ambas as personalidades, também denominado “conluio” (pactos inconscientes ou “lealdades invisíveis”).
Assim, no ato da escolha, um captou que poderia ajudar o outro a encontrar juntos uma saída mais adequada (ou conveniente) para as dificuldades em lidar com sentimentos hostis, o que sozinho não conseguiria.
Mas, essa carga dupla, na qual apenas um elemento do casal possua um aspecto vivido e o outro não, acaba por pesar na experiência de ambos.
Existe uma ansiedade que faz com que seja importante conservar esses aspectos, mas no outro, o que pode gerar um processo de mútua digladiação (DIAS, 1990).
Conclui-se que, na conjugalidade, a escolha do(a) cônjuge e a permanência das relações envolve muitos outros aspectos além da demanda consciente de felicidade; ao contrário do senso comum, não é a busca do prazer e sim a manutenção das defesas narcísicas, decorrentes das primeiras identificações da criança com seus pais, aspirando conformar seu próprio Ego ao modelo alheio e desempenhando, assim, importante função na montagem das relações edipianas (que vão determinar a qualidade das relações conjugais futuras).
O desejo não é propriamente o desejo de algo que possa receber um nome, é antes o desejo de ser, decorrente de uma falta.
A questão básica é: por que nos ligamos a uma pessoa, em um relacionamento constante?
O nosso amadurecimento depende do estabelecimento de vínculos afetivos, basicamente amor e ódio. Os vínculos nos proporcionam a autopercepção e a autoconsciência.
Mas nem sempre o amadurecimento das condições de vínculo acompanha a idade cronológica, pois às vezes adultos permanecem em estados primitivos de relacionamento, como nos vínculos simbióticos.
Conforme nos esclarece Fagundes (In: COSTA (coord.), 1991):
[…] a escolha do parceiro também é só parcialmente consciente e sempre mesclada de fantasias e desejos, mesmo que o outro esteja longe de realizá-los.
Revive-se com intensidade a sensação de dependência e apego que estarão sempre presentes na relação afetiva, porém mais equilibrados numa pessoa amadurecida.
Considero como características significativas de amadurecimento a capacidade de perdão e respeito à autonomia do outro.
Sabemos que perdoar não é uma questão tão simples e para tal é preciso superar idealizações, isto é, a projeção excessiva de poder em que se ama, o que fatalmente levará a pessoa a se estagnar em estados de mágoa, consequentemente impossibilitada de perdoar.
E o respeito à autonomia do outro também implica tolerar que ele possa continuar sendo quem é, sem que isso traga perigo à relação (FAGUNDES, In: COSTA, 1991, p. 15).
Em Psicanálise e em Psicologia Social, o sujeito se insere nas relações com outros seres humanos, com quem estabelece vínculos que instituem subjetividades, podem sofrer, adoecer ou curar.
A relação do sujeito com o(s) outro(s) pode ser repetições das formas de relação de objetos anteriormente existentes em seu mundo externo (MANDELBAUM, 2010, 2014).
A referida autora acrescenta que, na Abordagem Sistêmica, cada membro da família ocupa um lugar dado pelas relações que estabelece com os demais membros.
O sistema de comunicação familiar estabelece um duplo vínculo: percepção e compreensão das mensagens verbais e não-verbais (simultaneidade, coerência, intenção do interlocutor, etc.).
Mais detalhes sobre a Abordagem Sistêmica, que embasa a prática das Constelações Familiares, é um tema interessante para outro artigo ok?
Espero que tenham apreciado o artigo, e nos encontramos nos próximos!
Referências:
ABREU, A. A perícia psicológica e os impasses dos novos laços familiares. In: III Congresso Ibero-Americano de Psicologia Jurídica. São Paulo, 1999, p. 6-8.
DIAS, M.L. O que é Psicoterapia de Família. São Paulo: Brasiliense, 1990. Coleção Primeiros Passos.
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.B. Vocabulário de Psicanálise. 9 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
FAGUNDES, M.C.F. A formação do vínculo amoroso. In: COSTA, Moacir (coord.) Vida a dois. São Paulo: Siciliano, p. 09-18, 1991. cap.
MANDELBAUM, B. Psicanálise da Família 2. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.
_. Trabalhos com famílias em Psicologia Social. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2014.
Texto baseado em:
SILVA, D.M.P. Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2019 (vol.01).
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