Desde o dia 08/07/2021, foi lançada na Netflix a minissérie “Elize Matsunaga: era uma vez um crime”, que aborda o homicídio do marido de Elise, Marcos Matsunaga.

Dirigida por Eliza Capai, a produção nacional foi dividida em quatro episódios de 50 minutos cada e encontra-se no Top 10 da plataforma de streamming.

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Com mais de 20 entrevistas, entre elas de familiares, conhecidos, advogados, jornalistas, especialistas criminais, a minissérie também traz uma entrevista exclusiva com a própria Elize, para contar sua versão dos fatos.

O objetivo da minissérie foi apresentar uma versão mais ‘humanizada’ do crime (entenda-se, não menos cruel!), oportunizando-se à própria Elize contar detalhes até então desconhecidos e até surpreendentes de sua vida pessoal (a infância pobre e os abusos) bem como da convivência conjugal.

Dessa vez em ambiente não inquisitivo (que não fosse somente durante a audiência de Júri, quando muitos só têm esse momento para contarem suas versões), de uma forma aberta, para que o público pudesse formar suas próprias opiniões.

Entenda o caso Elize Matsunaga

Segundo Elize, ambos se conheceram em 2004 quando ela, que fazia curso técnico em enfermagem, trabalhava como garota de programa para pagar os estudos.

Marcos, empresário do ramo alimentício (proprietário da marca ‘Yoki’), na época, era um de seus clientes, mas logo se apaixonou por ela.

Ele já era casado, mas manteve relacionamento com Elize durante 3 anos, até se divorciar da esposa para se casar com ela.

 Viveram bem até meados de 2010. Porém, o conto de fadas transformou-se em um pesadelo. O casamento foi marcado pelas constantes traições de Marcos, que afligiam a esposa, e havia muitas brigas e discussões.

Ela chegou a cogitar o divórcio, mas desistiu depois de descobrir que estava grávida. O marido, por sua vez, prometeu não traí-la mais, mas não foi o que aconteceu: mesmo após o nascimento da filha, prosseguiam os casos de infidelidade conjugal de Marcos.

Quando Elize viajou em 17/05/2012 para sua cidade-natal no Paraná, contratou um detetive, que lhe revelou que no mesmo dia Marcos levou uma garota de programa para um restaurante de luxo em SP e passou a noite com ela em um hotel na Vila Olímpia.

O detetive tirou fotos do encontro e informou tudo à Elize, que antecipou sua volta da viagem para o dia 19/05/2012, dia em que ocorreu o crime.

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De volta a SP, Marcos foi busca-la no aeroporto, juntamente com a filha de 1 ano e a babá. Chegaram em casa por volta das 18:30h, e a babá foi dispensada naquele dia.

Por volta das 19:30h, Marcos desceu para pegar uma pizza e, quando retornou ao apartamento, Elize resolveu ‘tirar satisfações’ com ele acerca do caso.

Marcos ficou agressivo, deu-lhe um tapa no rosto, ameaçou tirar-lhe a guarda da filha e que ela nunca mais veria a criança, começou a ironizar o passado dela de ‘garota de programa’.

Elize se enfureceu, e ao perceber que ele estava muito perto de uma arma de fogo, correu para outro cômodo da casa e pegou outra arma, sendo que para a Polícia, era para ‘intimidá-lo’. Marcos continuou ofendendo Elize, e ela atirou na cabeça dele, matando-o na hora.

Segundo Elize, o casal gostava de armas de fogo e atirar, praticavam tiro juntos. Daí a facilidade dela em utilizar a arma.

Do mesmo modo, decidiu se livrar do corpo sem levantar suspeitas e, como era técnica em enfermagem, sabia como esquartejar o corpo corretamente pelas partes dos ligamentos.

Esquartejou em 6 partes (cabeça, braços, tórax, pernas), colocou seus restos mortais dentro de diferentes sacos de lixo, literalmente ‘embalando’ os pedaços para colocar dentro das malas de viagem, para sair do condomínio sem que as pessoas desconfiassem.

No dia seguinte, 20/05/2012, por volta das 11h, Elize saiu do apartamento carregando três malas grandes de viagem, com o corpo de Marcos dentro, rumo ao Paraná.

Porém, no meio do trajeto, mudou o percurso e decidiu abandonar o corpo de Marcos um uma rodovia localizada em Cotia (SP). O corpo foi encontrado no dia 23/05/2012, e em 04/06/2012, pelas investigações pelo DHPP, ficou confirmada a identidade da vítima como sendo o famoso empresário Marcos Kitano Matsunaga, até então desaparecido.

A ação penal

As suspeitas, obviamente, recaíram sobre a própria Elize, que confessou o crime. No próprio dia 04/06/2012 foi decretada a prisão temporária dela.

Em 06/06/2012 a polícia fez a reconstituição do crime, Elize colaborou, e os trabalhos se encerraram no dia seguinte, 07/06. Quando a prisão temporária expirou, foi convertida em prisão preventiva.

Ela Cumpriu pena no Presídio de Tremembé (SP) e, no julgamento de 05 de dezembro de 2016, Elize Kitano Matsunaga foi denunciada por homicídio qualificado (com três qualificadoras) e ocultação de cadáver, recebendo condenação de 18 anos e 9 meses de reclusão em regime inicial fechado, permanecendo na mesma instituição penal.

Em 14/10/2019, em julgamento virtual, a 2ª. Turma do STF rejeitou o HC nº 174.659 da defesa de Elize Matsunaga, para reduzir a pena aplicada, alegando que a atenuante deveria preponderar sobre a agravante de o crime ter sido praticado contra o cônjuge.

Porém, o Ministro Ricardo Lewandowski, ao rejeitar o HC, esclareceu que, segundo jurisprudência do próprio STF, os critérios subjetivos para aumentar ou diminuir a pena nas instâncias inferiores (Tribunais Criminais) não são discutidos através de HC.

No entanto, em 2019, a Quinta Turma do STJ reduziu em dois anos e seis meses a pena de Elize, devido ao atenuante da confissão, totalizando agora 16 anos e três meses de prisão.

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Atualmente, a detenta está no regime semiaberto, e a estimativa é a libertação em 2028.

A outra face da violência doméstica

Quando se fala em ‘violência doméstica’, a primeira imagem que fazemos é a do homem agredindo, atacando, e até matando a mulher, certo?

Pensemos em termos de compleição física, força, agressividade desencadeada pela testosterona misturada com adrenalina, e às vezes técnicas específicas (como conhecimentos de lutas, ou manejo de armas).

Todas essas impressões compõem o conjunto das nossas representações sociais (conjunto de ideias, crenças, valores, inclusive estereotipadas) que, segundo MOSCOVICI (2015), se tornam cada vez mais “fossilizadas” (nos termos do autor) quanto menos conhecemos sua origem.

Mas também é frequente que mulheres agridam homens! Não apenas agressão verbal (mais comum) mas também agressão física e, se tiver algum recurso extra (ex.: manejo de arma), até matar!

Atendi um caso de um homem, de grande compleição física, mais de 100 kg, que foi agredido pela esposa. Ela é faixa-preta em judô, e ele só conseguia segurá-la pelos cabelos.

Resultado: ele teve hematomas no peito e nos braços, conforme laudo do IML. E ela? Só um corte no lábio!

Conforme esclarece MATA (2020):

[…] Embora ainda seja uma prática oculta dentro dos lares brasileiros,relatos sobre lesões corporais contra homens vêm aparecendo nos noticiários cada vez mais. Não restam dúvidas que a mulher pode ser também um agente capaz de provocar lesões corporais graves e até mesmo as mortes de seus companheiros por métodos violentos que, em muitos casos, se originam de agressões consideradas “normais”, sempre suprimidas pela vergonha de se buscar ajuda quando quem apanha é o homem. […]

A ideia de que a vítima será julgada ao procurar a autoridade faz com que homens que sofrem violência doméstica evitem realizar denúncias por temor de serem ridicularizados. Porém, há outros casos que esse medo advém de outros fatores, tais como o medo de perder o convívio com os seus filhos. […]

MATA (2020)

E isso nos remete à análise relevante da questão da Psicologia Social sobre a ‘representação social’ da figura da vítima (Sarti, 2011).

No momento da discussão acalorada que resultou na morte de Marcos, os dois estavam se agredindo, ofendendo com palavras, ele deu um tapa no rosto dela e debochou do passado dela como ‘garota de programa’, o que desencadeou toda a revolta e mágoa desse passado que ela procurou ‘enterrar’.

Ela, por sua vez, acreditou que, com o casamento, conseguiria ‘apagar’ o passado e que ele iria valorizá-la e ao próprio casamento e parar de sair com outras ‘garotas de programa’, que o nascimento da filha iria dar a ele a noção de ‘responsabilidade familiar’).

Ela percebeu, da pior maneira, que nem todo amor e dedicação à vida conjugal e familiar foi suficiente para incutir maturidade, respeito, responsabilidade no marido. Mas isso justifica matá-lo?

Na entrevista de Elize para a minissérie, ela conta dessa infância pobre em cidade pequena do Paraná, os abusos que sofreu, e todas as dificuldades que teve que enfrentar para construir sua carreira como técnica de enfermagem – submetendo-se à prática de ser ‘garota de programa’.

Realmente, a minissérie procurou ‘humanizar’ os fatos, no sentido de permitir à Elize a oportunidade de expor a sua versão dos fatos, explicar sua história de vida, e todo o sofrimento que vivenciou nessa relação que se esvaziou rapidamente. Mas isso justifica matá-lo?

Podemos cogitar que se trata de uma reprodução de representações sociais da fragilidade da figura da ‘vítima’, da incivilidade da figura do ‘agressor’ e da brutalidade da concepção de ‘violência’.

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Sarti (2011, cit.) problematiza essas questões, quando afirma que os estudos sobre a violência contra a mulher nos anos 1980, a partir do conceito de gênero, fizeram a crítica da vitimização, que supunha as mulheres como vítimas passivas da dominação masculina.

Mas que os mecanismos sociais ainda hoje reiteram esse posicionamento de manutenção dos padrões ao enfocar somente no sofrimento da vítima, descontextualizando dos fatores multifacetados da relação de violência.

Para essa autora, a construção da pessoa como vítima no mundo contemporâneo é pensada como uma forma de conferir reconhecimento social ao sofrimento, circunscrevendo-o e dando-lhe inteligibilidade.

Do mesmo modo, expressar a dor e o sofrimento supõe códigos culturais que sancionam as formas de manifestação dos sentimentos, suscitando discussões morais e exigindo reparação e cuidado.

A emoção costuma, de fato, obscurecer o discernimento, e a pessoa acaba agindo com impulsividade, por vezes excedendo os limites do admissível. Pela lei penal, alegar ‘violenta emoção’ pode ser um atenuante, para a redução da pena.

Mas a emoção não obedece ao tempo cronológico, e sim psicológico, pode perdurar muito tempo depois do ato, exatamente por alterarem a consciência da gravidade do ato praticado.

Elize ‘vingou’ sua honra aviltada pelos deboches de Marcos e pela própria discussão em si. Atirou nele na cabeça, com uma arma de fogo da qual tinha preparo para manejar, com intenção de matá-lo e não simplesmente feri-lo ou assustá-lo (como alegou à polícia).

Depois, teve tempo de planejar e executar a ocultação do cadáver. Isso justificava matá-lo?

Alegou também que estava cansada das traições do marido, que estava colocando em seu lugar uma ‘garota de programa’, mas quando ela ocupava esse lugar, enquanto ele era casado com outra mulher, isso não era ‘problema’. Isso justificava matá-lo?

Sair de casa levando a filha (para que ele não a impedisse de ter a guarda), entrar com processo de divórcio, guarda e regulamentação de visitas da filha, e partilha de bens, não seriam suficientes para que ela pudesse recomeçar a vida em outro lugar?

Em que pesassem todas as despesas com advogados e custas processuais, bem como o desgaste emocional com os processos, não teria sido uma opção mais plausível? Precisava matá-lo?

Declarou que sofreu muito na infância, entre necessidades e ter sido vítima de abuso. Decidiu se revoltar contra a pessoa que fez ‘desenterrar’ todo o sofrimento da vida pregressa.

Agora, o marido está morto, sem noção do que praticou à esposa, ela está presa, e a filha, agora com 10 anos de idade, está com a família paterna, que não aceitou participar do documentário da Netflix, e que inclusive está movendo ação para destituir o poder familiar da mãe.

Sem desmerecer ou desqualificar toda a explanação do sofrimento que ela tenha passado, fica a pergunta: “Precisava matá-lo?”

Referências:

AMENDOLA, B. “Era uma vez um crime”: Documentário humaniza Elize e faz de entrevista seu trunfo. Omelete, 09/07/2021. Disponível em: <https://www.omelete.com.br/netflix/criticas/era-uma-vez-um-crime-documentario-humaniza-elize-e-faz-de-entrevista-seutrunfo>.

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CIÊNCIAS CRIMINAIS. Caso Yoki: a morte de Marcos Kitano Matsunaga. Jus Brasil, jun.2018. Disponível em:

<https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/571938342/caso-yoki-a-morte-de-marcos-kitano-matsunaga>.

CIÊNCIAS CRIMINAIS. Crime sob influência de violenta emoção. 2016. Disponível em: <https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/399425739/crime-sob-influencia-de-violenta-emocao>.

GEARINI, V. O que revelou o caso Marcos Matsunaga? Aventuras da História. Disponível em: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/almanaque/o-que-revelou-o-caso-marcos-matsunaga.phtml>.

GUGLIELMELLI, A. O que aconteceu com filha de Elize Matsunaga após o crime. Observatório do cinema, 13/07/2021. Disponível em: <https://observatoriodocinema.uol.com.br/series-e-tv/2021/07/o-que-aconteceu-com-filha-de-elize-matsunaga-apos-o-crime>.

MATA, L.F. Violência doméstica contra o homem: um crime menosprezado. JusBrasil, 07/2020. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/83833/violencia-domestica-contra-o-homem-umcrime-menosprezado>.

MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.

REDAÇÃO. Supremo nega recurso que pedia revisão da pena de Elize Matsunaga. Consultor Jurídico (Conjur), 14/10/2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-out-14/stf-nega-recurso-revisao-pena-elize-matsunaga>.

SARTI, C. A vítima como figura contemporânea. Caderno CRH. Salvador, v. 24, n. 61, p. 51-61, jan.-abr. 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ccrh/v24n61/04.pdf>. Acesso em: 11 fev. 2020.

 

[1] ‘Representações sociais’ são, conforme Moscovici (2015), o conjunto de crenças, valores, regras, padrões morais, éticos ou religiosos de uma sociedade, e que são introjetados pelos sujeitos e passam a compor os padrões comportamentais daquela sociedade. Se forem conscientes, o indivíduo tem condições de questioná-las e modificá-las; se forem inconscientes, o indivíduo as reproduz acriticamente, reduzindo sua autonomia e senso crítico.

 

 

 

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