Vamos falar de um assunto polêmico, pouco abordado, porque incomoda (inclusive porque nem todos sabem que existe, justamente por ser um ‘segredo’): os mitos familiares. Isso mesmo.
Toda família tem o seu (um ou vários). Coisas que os adultos não falam para as crianças, maridos escondem das esposas (e vice-versa), coisas que constrangem, envergonham, temas com os quais as pessoas não conseguem lidar, não sabem o que fazer, e preferem manter-se em silêncio e não discutirem a respeito.
Pode ser um aborto, uma relação extraconjugal, um abandono de criança que nasceu deficiente, um abuso sexual intrafamiliar, um preconceito racial…
Como psicóloga clínica e jurídica, me deparo com muitas pessoas que ‘sabem’ que existe alguma coisa mas não sabem exatamente o que é, famílias que fazem de tudo para desviar o assunto porque sabem que isso vai mexer com incapacidades, preconceitos, conflitos de interesses…
A própria família constrói uma história fantasiosa sobre si mesma, que tende a deformar a maneira como ela realmente é e como funciona. Com isso, certos sentimentos e padrões de interação ficam inconscientes aos membros da família, através de mecanismos de defesa, de modo que eles não percebem a dinâmica envolvida neste jogo.
Assim, esses conteúdos inconscientes passam a compor o mito familiar. O mito significa que a maneira como a família entende a si mesma não é concreta (não corresponde a processos reais em jogo), e passa a organizar-se em torno de uma ideologia, de uma visão sobre o mundo e suas dificuldades, e principalmente quem é o membro da família que deve carregar o problema, que lhes parece mais aceitável como se fosse uma história verdadeira (Dias, 1990).
O sintoma consiste em uma tentativa de dar consistência de ‘ser’ ao sujeito, em procurar entender (sem sucesso) qual o seu lugar no contexto, em qual a importância ou sentido de sua existência para o Outro.
Geralmente o sintoma aparece na criança, como ser com menos recursos psíquicos para lidar com o jogo de forças. E esse jogo de forças acaba também incidindo nos conflitos conjugais que são levados ao Judiciário.
Quando ocorre algum abalo na estrutura familiar, isso imediatamente se reflete em sintomas na criança, que quando não é expressado e comunicado adequadamente, se torna um mito, aquilo que não tem significado real, e sim simbólico, nos quais as relações familiares e os vínculos não são conhecidos como tais, e sim em imagens ficcionais nas quais o sujeito se vê como ‘heroi’ ou como ‘vítima’.
Os mitos podem ficar ocultos durante anos, sendo inclusive transmitidos intergeracionalmente.
Mas geralmente eclodem diante de uma situação-limite: nascimento de uma criança com doença congênita que faz um dos pais revelar que sua família apresenta gene predisposto àquela doença; alcoolismo ou dependência química daquele ‘filho rebelde’, rejeitado pelos pais; problemas financeiros na família decorrentes de perdularidade ou divisão incorreta do patrimônio; rejeição ou abandono dos pais ao filho deficiente, por não saber (ou não querer) lidar com essa situação; e o mais constrangedor de todos, o abuso sexual intrafamiliar.
Por vezes as questões são trazidas aos consultórios dos psicólogos e, em conflitos intensos, ao Judiciário.
Até a questão da comunicação familiar fica prejudicada. O pacto de defesas faz com que o diálogo fique obstruído, por medo de que eclodam os temas-tabus e a família precise encarar suas dificuldades.
Nesse sentido, cada membro desenvolve um contato cada vez menos autêntico, o que favorece a solidão, mesmo quando pertence a uma grande família.
É preciso que o psicólogo judiciário, enquanto profissional capacitado a avaliar a dinâmica familiar e suas implicações, observe não apenas a comunicação verbal como também a não verbal, demonstrado através de atitudes, pequenos gestos e expressões, do posicionamento espacial com os outros e demais comportamentos não verbais, bem como da própria possibilidade de múltiplas interpretações do que é dito ou não dito.
A comunicação não verbal, ao lado da verbal, torna-se então importante elemento indicador da estrutura psíquica do grupo familiar.
Por outro lado, pensando na forma mais amadurecida de superação do sofrimento pelo rompimento da relação amorosa, encontra-se KLEIN (1996), quando fala em reparação.
Nesse caso, trata-se do processo de reconhecimento da responsabilidade de cada um pela separação, elaborando-se a vivência da “dor” rompendo-se com a tendência à “culpabilização” do outro e renunciando às necessidades fusionais, que conduz à dicotomia maniqueísta (um é totalmente “bom’ e o outro é totalmente “mau”) e com um processo de desinvestimento amoroso com a recuperação das partes de si que foram projetadas no outro.
A capacidade de reparação depende da maturidade de separar os conflitos internos daqueles vivenciados na relação, podendo gerar atitudes criativas e transformadoras.
Sem realizar esse processo, a fuga para novas relações, ou mesmo o estabelecimento de vínculos patológicos com o(a) ex-parceiro(a) por meio de litígios judiciais intermináveis só conduz ao desgaste físico e emocional e, consequentemente, ao fracasso.
É claro que não se pretende substituir a psicoterapia familiar (em âmbito clínico), porque não é essa a função do psicólogo judiciário. A psicoterapia de casal deve fazer parte do processo de compreensão da dinâmica familiar, com muito mais recursos e tempo hábil do que ocorreria no espaço limitado destinado à Psicologia no sistema judiciário.
O que interessa aqui é pensar que, quando o casal se dispõe a elaborar os conflitos, de maneira adequada, e compreende a dimensão da corresponsabilidade no vínculo e os incômodos dela advindos, através do trabalho clínico, o relacionamento familiar passa a se estruturar em moldes mais maduros, aumentando a gratificação com o parceiro e a complementaridade sadia.
Entende-se por maturidade a capacidade de relacionamento interpessoal que considera o outro como o outro e não como um reflexo de si próprio ou como um depositário das expectativas, frustrações e necessidades (Dias, 1999).
Com isso, evitam-se as disputas judiciais, cuja lentidão e onerosidade apenas desgastam cada vez mais as pessoas e intensificam o vínculo neurótico que as une, ao invés de efetivamente trazer uma solução consciente e satisfatória.
Realmente, descobrir ou perceber que existe um ‘mito’ na família não é nada fácil. Mas sempre existe a possibilidade de resolver a situação, seja através da terapia individual, conversas abertas com os familiares, sem chegar o extremo de levar os problemas para um juiz resolver.
Por vezes, a presença de um Mediador Familiar, ou até de um(a) terapeuta que conheça Constelações Familiares pode ser extremamente útil. Mas isso é assunto para outro artigo!
Espero que tenham apreciado o artigo, e nos vemos em breve!
Referências Bibliográficas:
DIAS, M.L. O que é Psicoterapia de Família. São Paulo: Brasiliense, 1990. Coleção Primeiros Passos.
KLEIN, M. Amor, culpa e reparação e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Artigo baseado em: SILVA, D.M.P. Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2019 (vol. 01).
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