Em minha prática clínica, recebo majoritariamente mulheres com subjetividades em relação aos seus trabalhos.
O que fazem, como fazem, quais oportunidades de crescimento lhes são dadas, como isso acontece no mundo corporativo e nas instituições.
Injustiças que se percebe dentro dos processos de planos de carreiras, nas análises de suas performances e da evolução dessas mulheres dentro do corporativismo.
Além de como mulheres e homens negros são afetados em suas emoções quando submetidos a injustiças, se sentindo desvalorizados, deslocados e desmotivados.
A mulher negra está na base da pirâmide social
Ampliando a reflexão podemos olhar em direção a todas as áreas onde deveria haver competição, entretanto o que ocorre é uma disputa onde a pessoa negra, tem que lutar um combate desigual se quiser trilhar uma carreira onde não negros encontram apenas as dificuldades pertinentes ao processo.
Repito aqui o que já estamos cansados de saber: a mulher negra está na base da pirâmide social injusta, desigual e cruel.
É exatamente essa mulher apontada nas estatísticas ser a maioria de solteiras entre as mães solteiras e a maioria das mulheres entre as que não se casam.
Portanto, a mulher negra precisa na maioria das vezes se movimentar sozinha para sustentar a si e suas famílias.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2017, mais de 57 milhões de lares brasileiros são chefiados por mulheres, o que significa algo em torno de 40% das famílias do país.
Desse total, aproximadamente 57% das famílias chefiadas por mulheres com filhos/as vivem abaixo da linha da pobreza. Entre as mulheres negras, a proporção sobe para 64,4%.
Hoje, 26,5% de brasileiras e brasileiros são considerados pobres, segundo a Síntese de Indicadores Sociais (SIS-IBGE), que segue o parâmetro adotado pelo Banco Mundial para definir a pobreza: famílias que vivem com até US$ 5,5 (R$ 25) por dia, por pessoa no domicílio.
Dentro desse grupo de brasileiros/as, há um outro: o das mulheres que sustentam sozinhas a casa com filhos/as de até 14 anos. Segundo o levantamento do IBGE, 56,9% dessas mulheres estão abaixo da linha da pobreza.
E se a raça for levada em conta, o cenário piora: 64,4% das mães negras vivem nessas condições de (extrema) pobreza.
Quando se trata da população trans e travestis, as dificuldades se aprofundam ainda mais, pois é comum que muitas destas tenham sido excluídas da escola desde as séries iniciais, expulsas de casa pela família ou totalmente apagadas do mercado de trabalho formal.
Fatos que corroboram para que 90% das pessoas trans e travestis no Brasil tenham que recorrer à prostituição, segundo a Rede Nacional de Pessoas Trans – Brasil.
O racismo enfrentado pelas pessoas negras no Brasil
No Brasil, pessoas negras têm que enfrentar o racismo para poderem se colocar no mercado de trabalho e ascender profissionalmente, destacando que para elas esse sistema é doloroso, rigoroso, excludente.
A mulher negra, por sua vez, enfrenta não apenas o racismo, mas também o machismo, o sexismo, a misoginia e outros atravessamentos velados e sutis, na maioria das vezes difíceis de serem denunciados.
Fato que dificulta a tomada de providências necessárias para corrigir a desigualdade. Mesmo quando tenham formação e qualificação necessária, as mulheres negras ao concorrerem a um cargo no ambiente corporativo são preteridas.
Assim, procurando desconstruir esses conceitos para entender o que acontece e de que maneira se dá, chegamos ao conceito de interseccionalidade.
A primeira vez que li sobre essa visão foi em texto da afro-estadunidense Kimberlé Crenshaw, a responsável por cunhar o termo.
Crenshaw designa como “sistemas discriminatórios” (racismo, patriarcalismo, opressão de classe e etc), ou ainda, “eixos discriminatórios” / “eixos de poder / “eixos de subordinação”.
Segundo ela, tais sistemas se sobrepõem ou se entrecruzam, criando intersecções complexas que atingem especialmente mulheres marginalizadas, e ocasionalmente homens marginalizados.
Desta forma, mulheres pretas, pobres, lésbicas e deficientes, por exemplo, seriam atingidas por opressões diferentes, mas ao mesmo tempo interconectadas, que as colocariam em situações de maior vulnerabilidade do que outras.
Eixos discriminatórios interseccionados
Problemas de injustiça social que refletem consequências excludentes tais como os já citados: racismo, sexismo, homofobia, transfobia, capacitismo e outros, estão sobrepostos. São eixos discriminatórios interseccionados.
Assim, uma mulher negra sofre esses atravessamentos na disputa que deve enfrentar ao concorrer a cargos nas instituições e mesmo em outros lugares menos corporativistas e rígidos.
Empregadas domésticas, faxineiras, vigilantes, balconistas e tantas outras profissões, passam também pela angústia de perceberem que estão sendo discriminadas e por quê.
São elas expostas ao número maior de todas essas exclusões que são submetidas as minorias.
Fato que pode nos surpreender tendo em vista os dados estatísticos onde se aponta o número de mulheres negras que sustentam suas famílias sozinhas e que vivem sozinhas, solteiras, sem um companheiro ou companheira.
A importância da interseccionalidade nas grades curriculares
Analisando e estudando a demanda de consultório onde pacientes negras e negros trazem suas questões de injustiças profissionais veladas, cruéis e muito difíceis de serem apontadas, penso que interseccionalidade deveria ser matéria de estudo curricular fazendo parte da grade de formação universitária, principalmente na área da saúde como a psicologia.
A interseccionalidade precisa urgentemente ser utilizada como uma ferramenta de pleno entendimento e interpretação, assim auxiliando no manejo das delicadezas que despontam, convocando um trabalho importante e minucioso junto ao indivíduo.
Entender como raça e sexo se interseccionam, como esse mecanismo afeta primordialmente a mulher negra, ironicamente escancarando o fato da mulher negra no momento de concorrência profissional ser apartada de direitos que deveriam ser iguais para todos.
Não esquecendo que gênero, orientação sexual, necessidades especiais também estão no escopo dessa discriminação implacável.
Segundo Carla Akotirene, em seu livro Interseccionalidade: O artigo 5O. da Constituição Brasileira assegura o direito fundamental de todos e todas serem tratados iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza.
Em tese, caso os instrumentos protetivos do nosso país queiram, de fato, combater as discriminações que impedem o exercício das liberdades fundamentais, precisam
averiguar as performances sexistas e racistas de seus expedientes usando a abordagem interseccional.
A discriminação e o mito da democracia racial são duas problemáticas que há séculos são sustentadas para nos enganar ao dizer que o Brasil é um país onde preconceito racial não existe.
Engodo que nos lança num mecanismo social brutalmente injusto. Vemos diariamente na imprensa noticias que corroboram o fato de que o racismo está presente na vida de toda a população negra brasileira, que sabemos ser mais que 53% da população.
A discriminação racial aparece nos noticiários e nas estatísticas quando nos mostram mulheres e jovens negros sendo espancados covardemente por policiais, quando crianças e pessoas indefesas em territórios vulneráveis são vitimas de balas perdidas.
Quando pessoas são presas injustamente e submetidas ao cárcere pelo fato de testemunhas supostamente reconhece-las como autoras de crimes, mesmo tendo como provar que estiveram em outros locais no horário apontado.
Essas pessoas quando podem, levam seus sofrimentos para o trabalho psicoterapêutico em busca de alivio. As diferenças discriminatórias precisam ser enfrentadas e extinguidas.
Responsabilidade árdua, questão delicada e urgente que todos precisamos assumir, negros e não negros. Com o objeto de constituir um sistema social justo, igual para todos.
Referências Bibliográficas:
Dialogando com Kimberle Crenshaw (ou: porque falar de interseccionalidades nos limita) – Portal Geledés
Kimberle Crenshaw – A Urgência da Interseccionalidade – TEDWomen 2016
Intersecionalidade – Carla Akotirene – Coleção Feminismos Plurais – Coordenação Djamila Ribeiro
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