O título desse artigo “Desculpa moça, te estuprei ‘sem querer’: A cultura do estupro”, pode parecer absurdo, e é, mas a partir de hoje essa frase tem base jurídica no Brasil.
De um lado temos a vítima, Mariana Ferrer, 21 anos, produtora de eventos, influencer digital, e que na noite do crime trabalhava para uma boate de luxo, divulgando-a nas suas redes sociais e recepcionando os convidados.
Do outro lado está o agressor André de Camargo Aranha, 43 anos, advogado e empresário, filho de um dos mais conceituados advogados de Santa Catarina.
O crime aconteceu em 15 de dezembro de 2018, Mariana alega que foi drogada e estuprada.
Além disso, foi apresentado provas exames comprobatórios como o DNA do esperma de André Aranha em seu corpo, laudo do hímen rompido, áudios do whatsapp e ligações.
Tais provas comprovavam o estado emocional descontrolado depois da agressão. Mesmo assim o agressor foi inocentado.
André Aranha negou até mesmo ter feito sexo com Mariana, mas seu esperma estava nas roupas e corpo de Mariana.
Dessa forma a justiça brasileira entendeu que o acusado cometeu estupro culposo, crime esse que não existe no Brasil e, portanto o réu segue inocente.
O post de uma amiga minha Angolana no Facebook (03/11/2020) pergunta: “Alguém pode explicar o que é estupro culposo?”
O veredicto final: estupro culposo
No Código Penal brasileiro no art. 18, II, define como culposo o crime “quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia”.
Em outras palavras, foi descuidado ou fez sem querer.
Isso explica a pergunta da minha amiga, mesmo falando o mesmo idioma, talvez ela tenha pensado que aqui no Brasil tenha um significado diferente, mas não.
É realmente o que a sentença quer dizer: uma mulher foi estuprada sem querer.
A pergunta que permeia a maioria das manifestações das redes sociais é: como alguém estupra sem querer?
Como pode haver imprudência, negligencia ou imperícia em um ato sexual que uma mulher está drogada e um homem a estupra?
Moral da história: Aos poderosos tudo se perdoa, aos fracos nada se desculpa
Em “Os animais e a peste” Monteiro Lobato já falava sobre a discrepância de se julgar pessoas simples x pessoas poderosas.
No conto, para tentar parar uma peste, os animais precisam sacrificar o animal com o maior número de crimes, todos eles, começando pelos mais poderosos, que revela assassinatos horríveis, mas um a um são inocentados pela esperta raposa.
Quando chega a vez do burro ele diz ter na consciência apenas o crime de comer uma folha de couve do senhor vigário.
A bicharada então unanime pede que o burro seja sacrificado por esse crime horrível.
Com a moral da história que aos poderosos tudo se perdoa, aos fracos nada se desculpa, Lobato denunciava que muitas vezes a justiça pesa contra aos fracos.
Nesse caso específico, Mariana é o pobre burro, tem sua virgindade questionada, sua vida privada e financeira escancarada (como se o atraso de sete meses de aluguel justificasse o porquê dela não aceitar o estupro calada).
O julgamento: O reflexo do machismo da nossa sociedade
E ainda foi acusada pelo crime de publicar fotos nas redes sociais com o dedo na boca e outras poses sensuais.
Quando ela questionou o que as fotos tinham a ver com o caso em questão ouviu do advogado de defesa do réu que “jamais teria uma filha no nível da Mariana”.
A vítima começou a chorar quando ainda ouviu (sem que o juiz interrompesse o agressor) que “não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo”.
O advogado de defesa do réu, que mais parecia advogado de acusação da vítima, acusou Mariana de ganhar a vida através da “desgraça dos outros”.
A desgraça a que o advogado se refere é o “pobre coitado”* (contém ironia) estuprar Mariana sem intenção alguma.
Só a imagem do julgamento em si já é deprimente, nenhuma mulher além de Mariana e quatro homens aparecem na tela ela tentando provar ser inocente mesmo com todas as provas contundentes a seu favor.
Não entendo quase nada de Direito, mas o conhecimento básico me faz crer que um julgamento desse tipo trás precedentes para que aconteça com outras mulheres.
E, os agressores estuprem mulheres e saiam impunes, e as vítimas acusadas de se aproveitar da desgraça alheia.
Nossa sociedade e justiça protegem agressores e acusam mulheres
Até quando teremos nosso caráter posto á prova toda vez que tentarmos denunciar um caso de violência?
Até quando a roupa que você usa, as fotos na internet será justificativa para que uma violência sexual possa ser cometida ou que seu caráter possa ser posto em prova?
A saga de Mariana e o veredicto da justiça trouxeram revolta no país todo.
O assunto foi o mais comentado na internet do dia, ultrapassando até mesmo as eleições americanas e ganhando apoio e indignação de muita gente famosa.
Desejo apenas que Monteiro Lobato não esteja sempre correto e dessa vez a justiça seja feita e Mariana consiga a justiça que tanto almeja.
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