A Pandemia


Um dos cenários mais complexos e precários que os trabalhadores dos serviços de alta complexidade vivenciaram, certamente foi marcado por um fator inimaginável para a maioria dos brasileiros: um vírus.

O covid-19 rapidamente se alastrou pelo mundo e no final do mês de março de 2020, palavras como “coronavírus”, “pandemia”, “isolamento”, “quarentena”, “lockdown” invadiram os noticiários, as redes sociais e o dia-a-dia de milhares de pessoas.

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Quando o silêncio das ruas vazias ecoavam o medo pela morte e pelo futuro incerto, os trabalhadores dos Serviços de Acolhimento Institucional de Crianças e Adolescentes (SAICAs) não tiveram a oportunidade de “ficar em casa”. Mesmo com a divulgação dos dados alarmantes sobre vítimas e o número de pessoas contaminadas pelo covid-19, as chamadas “áreas essenciais” não pararam.

O colapso político-social, o desmonte das políticas públicas e os diversos pontos de retrocesso nos últimos anos, já eram pautas preocupantes entre os trabalhadores do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Contudo, a pandemia elevou as mazelas sociais à níveis exorbitantes, trouxe a esta atmosfera a sensação de luto iminente e exigiu um esforço descomunal dos profissionais de saúde e da assistência social para lidar com adversidades diárias.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde (MS) realizaram diversas orientações à população visando evitar a disseminação do coronavírus, entretanto, como aplicar tais cuidados aos trabalhadores e aos acolhidos nos SAICAs?

Como viabilizar um trabalho tão dedicado ao cuidado, a proteção e ao acolhimento com protocolos de higienização que em sua maioria não contemplavam o contato físico (uso de máscaras, álcool gel, distanciamento social) em um ambiente onde a atuação profissional exige uma prática demasiadamente humanizadora e é realizada tanto dentro quanto fora dos muros dos SAICAs?

É possível mensurar a complexidade (concreta e subjetiva) a qual cada profissional foi exposto para dar continuidade ao trabalho, principalmente nos primeiros três meses (considerando que havia poucas informações sobre o vírus e possíveis intervenções médicas) ?

Para a maioria dos profissionais um grande “eclipse” trouxe uma espessa escuridão, mas, com o passar dos dias surgiram lampejos que proporcionaram a reorganização da rotina e da convivência, a retomada das práticas a partir da escuta, do acolhimento e da criatividade forjada na elaboração da experiência cotidiana.


Memórias autobiográficas

“[…] a favela é o quarto de despejo de São Paulo. É que em 1948, quando
começaram a demolir as casas térreas para construir os edifícios, nós os
pobres que residíamos nas habitações coletivas fomos despejados e
ficamos debaixo das pontes. É por isso que eu denomino que a favela é o
quarto de despejo de uma cidade. Nós os pobres somos os trastes velhos”
(Jesus, 1960, p. 17).


Desde a pré-história o homem criou diversas formas de registrar seu cotidiano. As mais antigas pinturas rupestres, são datadas há aproximadamente 40.000 a.C e são os primeiros registros das manifestações culturais da humanidade.

A maioria das representações contidas nessas imagens são animais, rituais, uso de ferramentas, pequenos indícios da formação de grupos e organizações sociais.

Seja para apenas perpetuar um conhecimento, realizar análises e reflexões sobre determinado fenômeno ou simplesmente descrever uma experiência de vida, o registro histórico ou biográfico é uma prática que fundamenta o desenvolvimento humano.

Dentro do contexto da Psicologia Social, a memória humana é uma instância extremamente complexa, pois, é um processo baseado em recursos sociais e culturais que ultrapassam a mera reprodução das experiências anteriores.

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O psicólogo social deve considerar que, são as pessoas que se lembram. As lembranças trazem fatos da participação ou testemunho, a partir de um funcionamento estritamente pessoal.

Ou seja, o indivíduo é fundamental para que seja possível realizar uma ampla leitura da memória social, embora ela reflita conteúdos socialmente determinados por grupos, pelas instituições e marcadores sociais.

Segundo Connerton (1993, p. 26), o termo memórias pessoais ou autobiográficas refere-se a “aqueles atos de recordação que tomam como objeto a história de vida de cada um, que se localiza num passado pessoal e a ele se refere”.

Desta forma, considera-se que tal pessoa está localizada em um tempo e espaço, desempenha papéis sociais e constrói sua identidade à medida que se relaciona com seu meio.

O historiador francês Rousso (2002) retrata a memória como uma reconstrução psíquica e intelectual que seleciona ativamente representações do passado juntamente com a memória coletiva pela qual o “recordador fez ou faz parte”.

Por isso, as memórias são indispensáveis para a (trans)formação das identidades dos sujeitos e o desenvolvimento da autopercepção e heteropercepção a partir dos processos de convivência social.

O teórico acima também menciona que, paradoxalmente a memória é um recurso presente no passado e simultaneamente na atualidade. Curiosamente essa dinâmica propicia ao sujeito recorrer ao passado visando compreender suas inquietações, a partir do exercício de narrar sua memória, reconstruindo assim, a si e ao universo que o rodeia.

Formação: Memórias e registros em tempos de pandemia nos SAICAs

A busca de quem se narra é se conhecer e ser reconhecido pela escrita, como em um jogo de espelhos, trançando-se a existência do narrador e de seu personagem no mesmo novelo da lembrança, como um fenômeno individual e íntimo, mas que não tem seus nós atados apenas no que lhe é próprio ou pessoal, e sim nas tramas de fenômenos construídos coletivamente e submetidos a mudanças e flutuações.

Os primeiros três meses de isolamento social na cidade de São Paulo foram desafiadores, pois nesse período, surgiram diversas dificuldades para a realização da formação e supervisão nos SAICAs: adoecimento físico e emocional dos profissionais, desfalques nas escalas devido a afastamentos médicos, problemas técnicos e logísticos, entre outros.

No que tange ao trabalho da FORMAÇÃO (programa do Instituto Fazendo História), optou-se oferecer o apoio institucional nas primeiras semanas.

Buscou-se acolher a complexidade das demandas que surgiram diariamente nos serviços por meio de recursos e ferramentas digitais, como por exemplo, envio de materiais de apoio por email, chamadas de vídeo com as equipes e ligações telefônicas.

Assim que foi possível retomar os encontros formativos por meios remotos, diante das demandas dos serviços acompanhados e das reflexões suscitadas na ocasião e apresentadas nesse artigo na parte introdutória, elaborei o planejamento com o tema: Memórias e registros em tempos de pandemia.

O intuito inicial era acolher os educadores e as equipes técnicas/gestores, oferecer espaço para escuta e reflexão coletiva, fomentando o compartilhamento de sentimentos, emoções, fragilidades e potências que haviam vivenciado desde o início do isolamento.

O segundo objetivo foi sensibilizá-los e incentivá-los a multiplicarem esse dispositivo (atividades para a produção de registro de memória individual ou coletiva a partir de diversos recursos e linguagens) para as crianças e adolescentes nos SAICAs.

Vale ressaltar que os materiais disparadores que compuseram essa formação foram: o vídeo “Museu da Pessoa e a autobiografia” (disponível no youtube), o artigo da edição 209 da revista Cult Digital “Quartos de despejo da história” e o ebook “Esta é a nossa história”, publicado pelo Instituto Fazendo História.

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As equipes se mostraram receptivas e desenvolveram um rico material a partir desta proposta. Para esse artigo, selecionei duas contribuições para ilustrar as múltiplas dimensões subjetivas que atravessaram esse trabalho: um registro escrito por um educador social que atuava em um SAICA localizado na zona leste de São Paulo e uma música que foi selecionada e compartilhada por uma assistente social de outro SAICA, situado no território da zona sul da mesma cidade.

Segue abaixo o texto com o conteúdo elaborado e produzido pelo educador ao final do encontro:

“Quando o vírus ainda era considerado uma gripezinha, ninguém imaginava onde
as coisas iriam chegar. Quando se poderia imaginar um mundo parado por causa
de uma doença? Eu só percebi que a coisa era grave quando veio a questão do
isolamento. Com isso, entramos num cenário que, pelo menos na atual geração,
não havia experimentado. O medo da falta de desabastecimento levou ao
desespero em supermercados. Além do medo da doença, pesa também o medo
do futuro. Na economia um modelo que por poucos detalhes difere do modelo
escravista, onde a renda do trabalhador não dá conta do básico como comida e
moradia… quem dirá agora?
Já sabemos quem pagará o prejuízo dessa paralisação do capital. O sonho de ter
o básico agora está mais distante, após esse período de sobreviver ao vírus
precisaremos sobreviver ao novo mundo que virá, que ainda não sabemos como
será. Tive vários incômodos com isolamento, mas são só detalhes frente ao
cenário que ainda teremos que enfrentar. O medo e o desespero de morrer deu
lugar a preocupação de como viver.”
(L. L. – educador social)

Em outra ocasião, a equipe técnica e o gestor do de outro SAICA sinalizaram o sentimento de desamparo e preocupação. Uma das técnicas rememorou a letra de uma canção em busca de expressar e elaborar o sentido e os sentimentos que rondavam o trabalho até ali.

A música escolhida por ela, Comportamento Geral, é de autoria do compositor e cantor Gonzaguinha, reconhecida como uma preciosidade da música popular brasileira lançada em 1972 e que foi censurada no período da ditadura.

Compartilho abaixo a música citada e aproveito para dizer que por meses seguidos esta canção ressoou em meus ouvidos como parte de uma “trilha sonora”, principalmente quando nos deparamos com as incertezas vindas dos acolhidos, familiares e profissionais envolvidos:

Você deve notar que não tem mais tutu
E dizer que não está preocupado
Você deve lutar pela xepa da feira
E dizer que está recompensado
Você deve estampar sempre
um ar de alegria
E dizer: tudo tem melhorado
Você deve rezar pelo bem do patrão
E esquecer que está desempregado
Você merece
Você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba e amanhã, seu Zé
Se acabarem teu carnaval
Você merece
Você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba e amanhã, seu Zé
Se acabarem teu carnaval
Você deve aprender a baixar a cabeça
E dizer sempre: muito obrigado
São palavras que ainda te deixam dizer
Por ser homem bem disciplinado
Deve pois só fazer pelo bem da nação
Tudo aquilo que for ordenado
Pra ganhar um fuscão no juízo final
E diploma de bem-comportado
Você merece
Você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba e amanhã seu Zé
Se acabarem teu carnaval

(Comportamento Geral – Gonzaguinha)


Diante do cenário catastrófico, o recurso humano e as diversas narrativas de vida entrelaçadas trouxeram sentimentos e emoções de um modo ímpar.

Neste sentido, o registro da memória individual ou coletiva foi a principal ferramenta utilizada para acessar a leitura do mundo, os acontecimentos que permearam os indivíduos dos SAICAS, tal qual os atravessamentos peculiares de cada território.

A partir disto, foi possível propiciar a elaboração das experiências vivenciadas naquele momento, bem como potencializar o processo criativo da equipe em busca de saídas saudáveis.

Narrativas de vida: registros de existência e resistência

“Não é no silêncio que os homens se fazem,
mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão.
(Paulo Freire)


Embora o relato do educador L. L. traga expressões que denotam medo diante das incertezas, incômodos e críticas sociais, há “a preocupação de como viver”. Ao ler seu registro ao grupo de educadores, me ocupo do último fragmento da escrita do educador e lancei uma provocação com o objetivo de incentivá-los a organizar uma atividade na casa com os acolhidos com a mesma finalidade
da formação que fui facilitadora.

Algumas ideias foram trazidas e semanas depois recebo uma mensagem da gerente do SAICA compartilhando um desdobramento muito interessante da Formação: Memórias e registros em tempos de pandemia. O educador L. L. havia proposto a atividade no plantão dele.

Nessa ocasião, um grupo de pré-adolescentes relataram suas percepções a partir das informações absorvidas através dos meios
de comunicação, demonstrando que as discrepâncias sociais agravavam o rápido contágio nas regiões periféricas. Por fim, lembrando uma atividade escolar, um dos acolhidos sugeriu que o pequeno grupo construísse uma maquete da cidade, sinalizando esta crítica social.
A partir de uma perspectiva Freiriana, a atuação do educador está enredada na sua ação transformadora e democrática que, por sua vez, propicia o desenvolvimento da autonomia e protagonismo do sujeito. Vale enfatizar que, a prática educadora lança-se ao desafio de aprender e assumir-se como parte integrante do processo de aprendizagem e da criação de uma memória coletiva.

Embora o SAICA seja um serviço de alta complexidade, ele não está “ilhado”. Não desenvolver espaço para incluir os fatos do cotidiano, principalmente nas atividades sobre a história de vida da criança e do adolescente, pode ser adoecedor. Pois inviabiliza a construção de um espaço de cuidado, bem como o contato e a elaboração de uma série de sentimentos, emoções e percepções.
Vale lembrar que, de acordo com as Orientações Técnicas (OT), uma das principais incumbências do educador é “oferecer “auxílio à criança e ao adolescente para lidar com sua história de vida, fortalecimento e construção de identidade” (p.66).

E mesmo em um período pandêmico, é imprescindível priorizar estratégias de cuidado que garantam este item e que não desconsiderem a
importância da construção de narrativas dos profissionais atuantes no SAICA.

Referências Bibliográficas

Connerton, P. (1993). Como as sociedades recordam (M. M. Rocha, Trad.). Oeiras: Celta Editora.
Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Jesus, C. M. (2005). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática.
Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para. Crianças e Adolescentes CNAS/.
CONANDA/MDS. Brasília, 2009.
Rousso, H. (2002). A memória não é mais o que era. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO,
Janaína. Usos e abusos da história oral. 5. Ed. Rio de Janeiro: Ed.FGV.

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