Olá a todos! Nesse artigo de hoje falarei sobre maternidade socioafetiva. Quero trazer uma vertente de um assunto em voga, mas ainda pouco debatido: a questão das relações socioafetivas entre mães e filhos.
Isso mesmo. Quando se fala em ‘socioafetividade’, geralmente se pensa no pai como um terceiro que se agrega a uma família biológica já constituída, seja pelo divórcio ou pela viuvez da mãe, caracterizando-se uma ‘paternidade socioafetiva’.
Mas aqui quero trazer uma situação um pouco diferente: quando é a mãe que se integra à família pré-constituída pelo pai (divorciado ou viúvo) e os filhos.
Atuo como psicóloga assistente técnica em um caso em que o pai, viúvo e com dois filhos pequenos (a mãe biológica faleceu pouco tempo depois do parto da 2ª. filha), se casa novamente.
Mas agora, como manobra de afastamento da atual esposa, diz que “ela não é mãe” das crianças porque não as gerou, que o tempo de convivência seria insuficiente para consolidar vínculos, etc. O processo ainda está em andamento.
São pertinentes aqui algumas discussões teóricas acerca da constituição da família e da estruturação dos vínculos familiares socioafetivos:
Antigamente o conceito de família era restrito às pessoas que viviam sob mesmo teto e sob a autoridade de um titular.
A partir de estudos em psicanálise, sabe-se que família é uma estrutura responsável pela transmissão de cultura e função fundamental de ensinamentos à criança no universo simbólico através das funções parentais.
Ou seja, é ela quem transmite estruturas de comportamento e de representação cujo jogo ultrapassa os limites da consciência.
Groeninga (In: GROENINGA; PEREIRA, 2003)[1] nos coloca que a família é a matriz do nosso psiquismo e está sempre em constante mudança, o que às vezes interpretamos como ‘crises’.
Mas, que essas mudanças, ou ‘crises’ nos permitem existir, estruturando nossas subjetividades – as relações familiares e sociais vão também contribuindo para essa estruturação da subjetividade.
Desta forma, o sentimento de afeto é de suma importância para a constituição da relação que envolve as pessoas que compõem o núcleo familiar e as leva a uma convivência sólida, em que todos vivem de forma comum e duradoura.
O que se busca nessa nova forma de família é a dignidade da pessoa humana, em que se vê a real possibilidade desta ser reconhecida a partir da convivência afetuosa entre aqueles que compõem a relação familiar.
A maternidade surge quando há o desejo de ocupar o lugar de objeto de amor e de ódio de um sujeito (FREUD, 1917/1976)[2].
Todos os cuidados direcionados a uma criança são pertinentes e sua constituição subjetiva e aos afetos que nascem dessa relação.
Cabe aqui apresentar a Teoria do Apego de BOWLBY (1982)[3], que descreve a importância das primeiras relações objetais necessárias ao desenvolvimento humano, uma vez que as relações do bebê com a mãe ou a pessoa considerada cuidadora torna-se fundamental para o advir do sujeito.
Nas primeiras semanas, não há dúvida de que um bebê é dependente de sua mãe para que possa sobreviver, mas não está ainda apegado a ela.
De acordo com as ideias de WINNICOTT (2000)[4], a dependência é máxima no nascimento e tende a diminuir ao longo da vida, apesar de seguir sempre de alguma forma presente.
Na teoria de BOWLBY (1982, cit.), o apego está ausente no nascimento e começa, com os meses, a adquirir força; infere que é improvável que qualquer fase sensível de apego comece antes das seis semanas.
Ele acrescenta que, o apego se torna evidente depois que a criança completa seis meses, ficando mais clara sua existência por volta dos 18-24 meses.
Portanto, os dois conceitos estão distantes de serem sinônimos.
De acordo com o que foi até aqui descrito, as crianças com apego seguro, ou que rumam à independência, têm confiança no amor de seus pais, sabem que podem confiar neles para compreender e satisfazer suas necessidades e veem o mundo como um local seguro.
A partir da dependência nos primeiros meses e a formação de um apego seguro, ocorre a independência posterior.
Os esforços de pais para levarem seus filhos à independência precoce resulta num processo inverso, ou seja, provocam dependência e medos que podem durar a vida toda.
Quando os pais são coerentes em seus padrões de cuidados e prestam atenção aos sinais de seu bebê, oferecem um ambiente altamente favorável para a criança senti-los e ao mundo como confiáveis e responsivos às suas necessidades individuais.
Pelo asseguramento repetido de que suas necessidades físicas e emocionais serão satisfeitas, o bebê começa a desenvolver um sentimento de confiança básica e apego que o conduz à construção da independência.
Assim, a criança pode usar sua curiosidade, pela base segura formada com seu cuidador, para desbravar e experimentar o mundo.
Considerando-se que atualmente não há mais possibilidade de pensarmos somente na família nuclear (como ocorria nos séculos passados), e que hoje temos inúmeras configurações familiares, a vinculação socioafetiva ganha importância na sociedade, inclusive com guarida nos Tribunais Superiores.
Tem o mesmo valor que uma família biológica, por isso merece todo o nosso respeito e atenção.
Quando o genitor biológico desqualifica a genitora socioafetiva por não haver vínculo biológico, desmerecendo o tempo e a qualidade de convivência, e impedindo a criança de manifestar sentimentos positivos em relação à mãe socioafetiva, está praticando atos de alienação parental, merecendo reprimenda judicial condizente.
Conforme afirma DOLTO (2003)[5]:
É espantoso! Porque é um dever do outro cônjuge visitar seu filho: ninguém pode se contrapor ao dever do outro. […] Não se protege a segurança da relação privando o filho do conhecimento do outro genitor. Ao contrário, isso constitui a promessa de uma enorme insegurança futura, e que já estaria presente desde a instauração de tal medida, visto que isso é uma anulação de uma parte da criança através da qual lhe é indicado, implicitamente, que esse outro é alguém desvalorizado e falho. […] É como se se quisesse reunificar a criança dando-lhe um único genitor, uma única pessoa. Isso é uma regressão.
E quando ocorre um rompimento abrupto da relação conjugal, causa confusão nos sentimentos da criança em relação à genitora socioafetiva (devido à convivência), fazendo com que a criança estabeleça vínculos afetivos inseguros (conforme BOWLBY, 1982, cit.), evitando interações sociais porque não saberá quanto tempo vai durar.
Retomando os ensinamentos de DOLTO (2003, cit.):
INÉS ANGELINO: Muitos divórcios ainda são homologados ‘pelas falhas’ e ‘pelos erros’. Estes ainda podem ser compartilhados, mas ainda é comum ouvirmos dizer: ‘Meu marido (minha mulher) tem toda a responsabilidade pelos erros’.
FRANÇOISE DOLTO: Qualquer que seja a idade do filho, essa expressão pejorativa e acusatória é desestruturante para ele, sem contar que é sempre falsa; destila seu veneno no coração dos filhos.
As dissenções de um casal provêm de dificuldades bilaterais relacionadas com a evolução pessoal de cada um.
E o único erro de cada um foi de se enganar a seu respeito e a respeito do outro ao constituir uma família.
Tanto na clínica psicanalítica como na avaliação psicossocial jurídica, é importante que o profissional procure localizar o sintoma da criança, entendendo-o como uma resposta que se impõe sobre a verdade do casal parental ou sobre a subjetividade do(a) pai/mãe, a fim de que esse mito seja identificado e não se torna uma lacuna na representação de cada um membro da família.
Como afirma DUARTE (2012, p.168)[6]: “(…) A verdade da estrutura familiar, do par parental, deverá também ser colocada no lugar da resposta do sujeito”. Como afirma a autora:
Nos casos de litígio conjugal, como é possível constatar na clínica, é que se podem e tendem a ocorrer os maiores problemas envolvendo os filhos.
Como os pais querem vencer, em geral, não se importam com as “armas” desse embate. E é nesse fogo cruzado que se encontra a criança, um sujeito que está se constituindo que preciso de amor e de modelos positivos para se identificar.
Quando um casal, antes ligado pelos laços de amor, passa a brigar movido pelo ódio, pela necessidade de vingança e pela posse dos bens adquiridos, em que o sujeito criança, na sua posição radical de dependência e desamparo pode ser incluído, isso quase sempre não acontece sem consequências.
Embora queiram permanecer neutros, os filhos do casal acabam aspirados pela luta e tornam-se “objetos torpedos” das batalhas travadas entre os genitores.
O sintoma consiste em uma tentativa de dar consistência de ‘ser’ ao sujeito, em procurar entender (sem sucesso) qual o seu lugar no contexto, em qual a importância ou sentido de sua existência para o Outro.
Geralmente o sintoma aparece na criança, como ser com menos recursos psíquicos para lidar com o jogo de forças.
Esse jogo de forças acaba também incidindo nos conflitos conjugais que são levados ao Judiciário (DUARTE, 2012, p.176, cit.).
Mas, existe um ponto que merece análise: o que caracteriza a vinculação socioafetiva? O tempo? Ou a qualidade da relação?
Se é o fator “tempo”, torna-se um critério rígido e afastado da realidade, porque existem relacionamentos longevos em que os cônjuges sequer se cumprimentam, e existem relacionamentos breves mas com muitos momentos intensos, projetos de vida, construção contínua…
Então, não é o “tempo” e sim a qualidade. Indispensável a avaliação psicológica da Equipe Técnica mais acurada que possa identificar a qualidade dos vínculos afetivos entre mãe e criança, e se ocorrem manobras do pai biológico para desprezar essa vinculação.
Como nos ensina Rosas (In: ABPJ, 2019)[7]:
Não é a ligação biológica que determina a força e a intensidade do vínculo existente entre os membros de uma família, mas sim as memórias e vivências por eles partilhadas. Sendo o afeto o ingrediente que permeia todas essas experiências, podemos pensar que ele desempenha o papel principal na construção das subjetividades dos indivíduos que compõe um grupo familiar
ROSAS (2019, p. 64).
Considerações Finais:
Como em muitos casos concretos envolvendo a parentalidade socioafetiva independente do gênero, o mais indicado nesses casos é, a partir de uma Avaliação Psicológica criteriosa, recomendar-se a Guarda Compartilhada e a manutenção da convivência com a criança.
Considerando-se o parâmetro “qualidade” de vínculos como o mais acertado nesses casos, cabe aos genitores (biológico e afetiva) conversarem acerca dos cuidados com a criança, apresentação de limites e melhor maneira de educá-la.
Mesmo quando haja um rompimento da relação conjugal, os vínculos socioafetivos precisam ser preservados, pois isso será um modelo positivo para a criança no momento de estabelecer vínculos afetivos futuros.
Referências Bibliográficas:
CASSETARI, C. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva. Efeitos jurídicos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2017.
SILVA, L.B.L.; BONVICINI, C.R. Novas configurações familiares: estudo dos efeitos jurídicos e afetos. Revista Brasileira de Direito Constitucional Aplicado. São Gotardo (MG): Centro de Ensino Superior de São Gotardo – CESG, v. 3, n. 2, jul./dez. 2016. Disponível em: http://periodicos.cesg.edu.br/index.php/direitoconstitucional/article/viewFile/315/431#:~:text=Obtendo%2Dse%20como%20base%20%E2%80%9CLacan,%2C%20estarem%20necessariamente%20ligados%20biologicamente%E2%80%9D.. Acesso em 29 jan. 2021.
SILVA, D.M.P. Psicologia Jurídica no Processo Civil Brasileiro. 4. Ed. Curitiba: Juruá, 2019 (vols. 01 e 02) – em breve, 5ª. edição 2021.
[1] GROENINGA, G.C. Família: um caleidoscópio de relações. In: GROENINGA, G.C.; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (org.). Direito de Família e Psicanálise – Rumo a uma nova epistemologia. Rio de Janeiro: imago, p.125-142, 2003.
[2] FREUD, S. As transformações do instinto exemplificadas no erotismo anal. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 17, p. 157-166, 1917/1976.
[3] BOWLBY, J. Formação e rompimento dos laços afetivos. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
[4] WINNICOTT, D. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000.
[5] DOLTO, F. Quando os pais se separam. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
[6] DUARTE, L.P.L. A guarda dos filhos na família em litígio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.
[7] ROSAS, J.M.M.P. O afeto como elemento transformador do conceito de família. In: ABPJ (Associação Brasileira de Psicologia Jurídica). Cadernos de Psicologia Jurídica: Psicologia na prática jurídica. São Luís: UNICEUMA, 2019. – (Cadernos de Psicologia Jurídica, v. 1). ISBN 978-857262-040-6.
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