A punição, e a ameça dela, estão constantemente a nos rodear. Na verdade, utilizamos ela constantemente e muitas vezes sem perceber.
Quando um familiar ameaça bater em uma criança caso não se comporte, quando uma mãe orienta seu filho para levar um casaco, caso contrário vai “pegar friagem” e ficar doente, quando falamos para uma criança que se ela não comer toda a comida ela não vai brincar.
Quando avisamos à um colega que leve o guarda-chuva para não se molhar, quando o médico ordena que o paciente pare de fumar para não morrer de câncer, ou ainda quando um líder religioso nos fala para não cairmos em tentação para evitarmos o fogo do inferno.
Embora os três primeiros exemplos sejam corriqueiros e não serem importantes de se tomar nota, talvez os dois últimos pareçam bastante razoáveis ao leitor.
Oras, é um ótimo aviso e um conselho óbvio vindo de um médico que preocupa-se com a saúde de seu paciente, e de um líder religioso que se preocupa com as almas de seu rebanho.
Porém, todos os exemplos utilizam algo que podemos chamar de controle coercitivo, ou seja, o uso ou ameaça de uso de punição para controlar nossos comportamentos.
A apenas algumas décadas atrás era comum, aceitável e recomendável utilizar a punição física no ambiente educacional, visto que o papel da escola era ajustar seus alunos à “normalidade” do mundo e não ensiná-las a alterar o contexto no qual estavam.
A desistência e índices de reprovações eram um fenômeno comum por diversos fatores. Eu mesmo conheço muitas pessoas na idade dos meus avós que sofreram as consequências desse sistema punitivo.
Seriam esses fenômenos coincidências? Felizmente, a punição física não é mais tolerada no contexto educacional, mas isso não quer dizer que a coerção não está mais presente.
Inclusive nas famílias as punições físicas estão aos poucos sendo consideradas inadequadas e sumindo, embora ainda sejam presentes.
Nossos sistemas econômicos e judiciais também não estão longe de serem fontes de controle coercitivo.
Aliás, estão bem próximas de serem. Somos constantemente bombardeados por preços abusivos da “mão invisível do mercado”, porém muitas dessas compras são necessárias para a nossa própria sobrevivência, como alimentos, transporte, abrigo e vestimentas.
De certo modo, usando uma analogia, é como se essa mesma mão se fechasse em punho e nos socasse no estômago a cada compra superfaturada que temos de fazer.
Talvez essa mão não seja tão invisível assim, e com certeza não é incorpórea.
A própria natureza nos ameaça constantemente.
Precisamos construir uma casa para não ficarmos sujeitos a ameaças externas, precisamos construir represas para que as enchentes não destruam nossas casas, temos de armazenar alimentos e água para fugirmos de uma possível escassez.
Inclusive no momento em que escrevo esse texto, estamos passando por uma grande seca na minha região.
A natureza, claro, é impessoal, e por isso não devemos atribuir vontade à ela.
Isso foi só um exemplo de como estamos acostumados a usar, e de sermos alvo, de punições e ameaças a mais tempo do que a humanidade é humanidade.
Mas por que o uso do controle coercitivo é algo ruim se a humanidade usa isso à milênios?
Bem, desde o surgimento da Psicologia Experimental diversos estudos sobre o tema foram realizados, e suas consequências a curto, médio e longo prazo foram descobertas.
Sabe-se que contextos aversivos tendem a gerar comportamentos de fuga e esquiva das fontes de punição, característica marcante em quadros ansiosos, e na impossibilidade de fugir ou se esquivar a abulia se estabelece, característica presente em quadros depressivos.
Gastamos mais tempo da nossa vida nos esquivando e fugindo das punições e tristezas do dia a dia do que naquilo que realmente importa: a nossa felicidade.
Punimos então porque somos maus por natureza? Longe disso.
Por natureza não somos nem bons e nem maus. Somos uma espécie animal como qualquer outra, que se comporta conforme contexto histórico e presente no qual estamos inseridos.
Querer dar um julgamento moral sobre o curso das ações é estar distante de mudar o que realmente importa: o ambiente no qual estamos inseridos.
É muito mais razoável, e científico, afirmar que uma das possíveis causas para continuarmos ameaçando, punindo e achando normal isso, apesar de também termos sofrido com isto, é nossa aprendizagem.
Desde pequenos somos expostos a condições aversivas e modelos nos quais espelhamos nossos comportamentos.
Tão logo temos condições de engatinhar, andar e falar, compreendemos que o mundo funciona dessa maneira e que isso é natural e inevitável.
Isso não acontece porque somos maus por natureza, mas porque não conhecemos e não fomos expostos a outras alternativas.
Embora estamos mais perto, ainda estamos muito longe de produzirmos uma sociedade não punitiva.
Porém, cada ação e cada palavra que nos levam para esse caminho conta.
Existe uma ampla literatura técnica e científica na Psicologia que pode nos ajudar nesses assuntos, porém parece que isso sempre mexe com quem está no poder. Por que será?
Referência Bibliográfica:
Sidman, M. (2011). Coerção e suas implicações. Campinas, São Paulo: Livro Pleno. (Trabalho original publicado em 1989)
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