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O privilégio de não ser um vitimista numa sociedade racista

O uso do termo vitimismo é muito utilizado para desqualificar mazelas produzidas por uma série de medidas históricas adotadas em detrimento da população negra, mas como falar em vitimismo em uma sociedade tão desigual?
O privilégio de não ser um vitimista numa sociedade racista

A cena é conhecida. Com certeza muitos de nós já viveu ou presenciou algo do tipo.

Estamos, por exemplo, em uma roda de conversa relatando sobre situações difíceis que passamos.

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De repente, emerge do júri popular um ser que, sabe se lá o motivo, acredita ter conhecimento o suficiente para classificar nosso relato como vitimista e menosprezar o sofrimento que acompanha a história.

Mais estranho ainda é observar que essa pessoa, que geralmente não passou por essas experiências, ganha muitos apoiadores, inclusive aqueles que tiveram vivências parecidas com o autor da história, mas preferem tomar o partido do outro.

Isso é bem característico desses tempos de redes sociais, no qual observamos o despertar de uma gama de indivíduos desqualificados de qualquer conhecimento sobre racismo, machismo ou homofobia proferindo discursos repletos de retóricas vazias.

De certo, eles sempre estiveram por aí. Nas nossas famílias, em nossos grupos de amigos ou na vizinhança.

O fato é que o suposto anonimato concedido pela internet deu a oportunidade para esse tipo de conduta se tornar comum e o pior é que muitos deles sequer procuram aprofundar-se nas discussões que acreditam ter conhecimento.

Pensemos. Quando um conceituado médico nos dá orientações sobre a maneira correta de cuidarmos de nossa saúde, não questionamos.

Afinal, ele estudou muitos anos para obter aquele conhecimento.

O mesmo ocorre caso um técnico de informática fale sobre os melhores procedimentos para manter o bom funcionamento de um computador.

Esse mesmo respeito não é dirigido aos profissionais de ciências humanas, sobretudo quando o tema defendido esteja relacionado às minorias.

Vejo uma série de críticas feitas às denúncias de casos de racismo.

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Geralmente, alegam que é exagero fazer esse tipo de acusação em um país miscigenado e finalizam com o famigerado termo conhecido como “vitimismo”.

Vejo aqui duas questões:

A primeira diz respeito ao pouco conhecimento de todas as problemáticas que envolvem as questões étnico raciais.

De todas essas pessoas que nos chamam de vitimistas, quantas, de fato, leram sobre racismo?

Quantas conhecem algo da história da África que não esteja ligado ao Egito ou ao tráfico de escravos? Quantos desses indivíduos já estudaram Cida Bento, Marcus Garvey ou Frantz Fanon?


“… não ser chamado de vitimista é um privilégio minuciosamente construído…”


Provavelmente poucos, pra não dizer nenhum. Ainda assim, se julgam conhecedores de um tema que pouco estudaram.

Não quero com isso eliminar o direito da crítica daqueles que não puderam conhecer o tema.

Em um país onde a minoria chega às universidades, seria como ser a favor da elitização das queixas, o que excluiria um elevado número de pessoas negras, por exemplo.

Apenas deixar registrado como aparentemente não é necessário conhecimento prévio para discursar sobre alguns assuntos e ser amplamente ouvido por aqueles que não se beneficiam dele.

Isso, aliás, nos leva à segunda problemática, que é exatamente a que dá nome a esse texto: não ser chamado de vitimista é um privilégio minuciosamente construído.

Há alguns meses, vimos Roberto Alvim proferir um discurso que fazia referências a propaganda nazista, que tinha Joseph Goebbels como seu principal expoente.

Imediatamente, surgiram inúmeras críticas ao ministro, que foi demitido do cargo.

Curiosamente, em um clube dirigido por judeus, o presidente Jair Bolsonaro relatou que na Comunidade Quilombola de Ivaporunduva o afrodescendente mais leve pesava sete arroubas (medida usada para pesar gados).

Na ocasião, foi possível ouvir risos de parte da platéia do clube Hebraica Rio.

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Na época, diversas críticas foram feitas ao até então deputado, mas muitos saíram em sua defesa, dizendo ser exagero acusá-lo de racismo e que, adivinhem: era vitimismo por parte das pessoas negras.


“…se você não é de São Paulo, talvez não saiba que em uma área nobre da capital paulista existe um restaurante chamado Senzala…”


Ao contrário de Roberto Alvim, Bolsonaro não foi exonerado de seu cargo de deputado federal e ainda foi eleito presidente alguns meses depois.

Agora tente imaginar a seguinte situação: Você está em uma cidade que não conhece, procurando um restaurante. Andando em um bairro nobre. Vê um local cheio e decide parar por ali.

Quando finalmente chega ao local, olha a fachada e descobre que o lugar se chama “Campo de concentração”. Admita, você acharia estranho e de muito mau gosto.

Provavelmente se perguntaria o porquê daquele nome ter sido escolhido e como aquelas pessoas conseguem consumir em um local com um nome que faz referência a um período tão triste da história da humanidade.

Pois bem, leitor, se você não é de São Paulo, talvez não saiba que em uma área nobre da capital paulista existe um restaurante chamado “Senzala”.

Obviamente, já foram feitas críticas a esse nome, assim como uma intervenção de alguns ativistas dentro do local, que questionavam como seria a receptividade do público caso o nome escolhido fosse “Auschwitz” ou “Hiroshima”.

Como você deve imaginar, o nome do restaurante não foi alterado e aqueles que o criticaram foram chamados de… Bom, você sabe.

Quando falei sobre esse privilégio de não ser um vitimista ter sido construído, falo também sobre como aprendemos a lidar com cada tema.

Sabemos pouco sobre a história da África e temos um conhecimento superficial sobre a escravidão.

Na escola, aprendemos sobre a lei do sexagenário, lei áurea e do ventre livre. Não aprendemos sobre a lei de terras, que em 1850 praticamente proibia os negros libertos de serem proprietários.


“… vemos inúmeras pessoas reproduzindo discursos que reforçam a ideia de que negros se vitimizam, ignorando diversos acontecimentos históricos que impediram sua ascensão social…”


Também não somos ensinados sobre a lei da vadiagem, que em 1890 prendia todos aqueles que perambulavam pelas ruas sem trabalho, sem residência fixa ou praticando capoeira ( Adivinhem qual era a cor dessas pessoas?).

Também não aprendemos sobre a Lei do Boi, que era uma lei de cotas que garantia vagas em escolas técnicas e universidades para filhos dos donos de terras.

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Ou seja, todos os problemas enfrentados pela maioria da população negra têm origens muito bem arquitetadas.

Como isso não é ensinado, vemos inúmeras pessoas reproduzindo discursos que reforçam a ideia de que negros se vitimizam, ignorando diversos acontecimentos históricos que impediram sua ascensão social.

Por isso, muitos negros compram um discurso do qual não se beneficiam.

Nesse momento, é possível que algumas pessoas brancas aleguem que, assim como os negros, apenas reproduzem o que lhe foi ensinado.


“… me senti desrespeitado e fui questionado se as pessoas em questão tinham realmente sido ruins ou se apenas cometeram um pequeno deslize que deveria ser perdoado…”


A questão, a meu ver, é um pouco mais complexa. Nós, pessoas negras, reproduzimos um discurso que nos prejudica diretamente e, com isso, colaboramos sem querer com o pensamento de que nos vitimizamos toda vez que um assunto sobre racismo é discutido.

Darcy Ribeiro bem disse que a crise da educação no Brasil é, na verdade, um projeto. Diga-se de passagem, muito bem sucedido.

Durante uma sessão de terapia, minha psicóloga questionou-me sobre um possível sentimento de rancor, após ouvir algumas queixas minhas. Chamou-me a atenção.

Eu tinha relatado diversas situações em que me senti desrespeitado e fui questionado se as pessoas em questão tinham realmente sido ruins ou se apenas cometeram um pequeno deslize que deveria ser perdoado.

Por outro lado, meus receios para com essas pessoas talvez fossem exagerados, segundo ela. Interessante.

O meu comportamento poderia causar sofrimento a eles. Já minhas queixas em relação a essas pessoas eram apenas um rancor, algo sem muita relevância.

Talvez uma versão maquiada do vitimismo.

Há pouco tempo, o empresário Rodrigo Branco fez comentários racistas sobre a apresentadora Maria Júlia Coutinho e a participante do BBB20, Thelma Assis, dizendo que elas só alcançaram notoriedade por conta da pele negra e, segundo ele, por serem umas “coitadas”.

Particularmente, não o conhecia até aquele momento. No dia seguinte, soube que ele tinha excluído sua conta no Instagram por conta de críticas que recebera.

Ora, interessante pensar que ele não soube lidar com um único dia de críticas virtuais e optou por se retirar de campo.

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Imagine se fosse diariamente contestado como Thelma é por conta de suas escolhas no reality show? Ou recebesse as mesmas críticas desonestas que Maju enfrenta diariamente, como ele mesmo fez?

Como seria o comportamento do empresário se fosse reprovado em diversos processos seletivos por “não estar no perfil que a empresa procura”?


“… todos os nossos sofrimentos são minimizados por pessoas que pouca sabem sobre racismo …”


Se observasse que as pessoas guardam seus objetos de valor ou fecham os vidros do carro quando notam sua aproximação?

Poderia escrever aqui mais inúmeras situações enfrentadas por pessoas negras, mas acredito que a reflexão já pode ser feita a partir dos exemplos citados.

Uma pessoa que não conseguiu dar conta de críticas feitas em uma rede social em um único dia conseguiria passar por todas essas situações sem se queixar? Afinal, quem é o vitimista?

Como disse, todos os nossos sofrimentos são minimizados por pessoas que pouca sabem sobre racismo.

Essas mesmas pessoas são as primeiras a levantar queixas quando se sentem desrespeitadas, mas não são chamadas de vitimistas.

Encerro esse texto ressaltando a importância de nos atentarmos a essas falas que podem encobrir um racismo.

Temos sofrimentos e precisamos falar sobre eles, contudo, seremos tratados como pessoas que se colocam voluntariamente em uma posição de coitadismo.

Não ser chamado de vitimista é um privilégio.

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Sobre o autor(a)

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Rodrigo Xavier Franc

Graduado em Psicologia, ampla vivência com pessoas em situação de rua e dependentes químicos. Atualmente realizo atendimento clínico nos bairros de Santana e Higienópolis.
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