Bruxas que falam demais. Vampiros que evitam o sol. Magos isolados em torres. Lobisomens que não conseguem controlar seus impulsos.
Esses personagens mitológicos e místicos povoam nossa imaginação desde que somos pequenos, mas talvez haja mais verdades humanas escondidas nesses arquétipos do que costumamos perceber.
Mais especificamente, talvez o que hoje chamamos de neurodivergência tenha sido, no passado, interpretado como feitiçaria, maldição ou estranheza.
Nesse último feriado, comecei a assistir à série A Descoberta das Bruxas, baseada na trilogia literária All Souls, que mistura romance, elementos históricos e criaturas sobrenaturais — bruxas, vampiros e demônios — quando tive um insight: será que a invenção desses seres teve inspiração nas neurodiversidades?
Segundo Carl Jung, psiquiatra e pensador suíço, a humanidade compartilha o que ele chamou de inconsciente coletivo: um conjunto de imagens, ideias e memórias simbólicas que atravessam culturas e épocas.

Desse inconsciente emergem os arquétipos — modelos universais de personagens que representam aspectos profundos da nossa existência psíquica. E entre esses arquétipos estão figuras como o mago, a bruxa, o lobo interior, o estranho, o excluído.
Quando olhamos para esses personagens com os olhos de hoje, é difícil não enxergar neles semelhanças com características comuns de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH).
Isso não significa que esses personagens foram conscientemente baseados em diagnósticos modernos. Mas é possível que, ao longo da história, comportamentos neurodivergentes tenham sido lidos como “anormais” ou “sobrenaturais” e, assim, transformados em mitos.
Vamos começar com os vampiros. Silenciosos, introspectivos, sensíveis à luz solar, ao som, ao toque. Preferem a noite, onde há menos movimento e menos ruído.
São avessos a grandes interações sociais, mas mantêm laços profundos com poucos. Seus sentidos são aguçados: ouvem mais do que deveriam, cheiram mais do que gostariam, percebem o que os outros ignoram.
Em A Descoberta das Bruxas, isso é especialmente evidente em Matthew Clairmont. Ele ouve conversas à distância, sente emoções no cheiro de alguém, identifica mudanças hormonais pelo aroma de Diana, a bruxa por quem se apaixona.
Esse olfato não é apenas poético — é quase intrusivo, e muitas vezes o desestabiliza emocionalmente. Ele se retira, evita o toque, se isola. Suas emoções, quando transbordam, são perigosas.
Seu maior medo é machucar alguém sem querer. A luta para manter o autocontrole, mesmo amando profundamente, é constante.
Essas descrições se assemelham às vivências de muitas pessoas autistas. A hipersensibilidade sensorial é um aspecto amplamente documentado do espectro. Luzes fluorescentes, cheiros fortes, ruídos repentinos podem causar desconforto ou até dor física.

Não se trata de preferência, mas de uma configuração sensorial diferente. Além disso, a forma de se relacionar dos vampiros — mais profunda, mais solitária, mais controlada — lembra o modo como muitas pessoas autistas vivenciam os afetos. Há afeto, mas ele não se comunica da forma esperada.
Matthew não é o único. Na cultura pop, temos Louis, de Entrevista com o Vampiro, sempre introspectivo e dilacerado pela culpa de sentir demais. Edward Cullen, da saga Crepúsculo, foge do toque, dos cheiros e das emoções humanas por medo de se perder neles.
Até mesmo o clássico Nosferatu, com seu corpo deformado e isolamento completo, ecoa a experiência de viver num mundo que não te compreende — ou não te suporta.
Agora pense nas bruxas: barulhentas, criativas, impulsivas, cheias de ideias que explodem como feitiços descontrolados viviam gargalhando em bandos. Muitas vezes, são personagens femininas intensas, que ocupam espaço demais, que desafiam regras. A bruxa não cabe. Não é fácil de rotular. E paga caro por isso.
Diana Bishop, em A Descoberta das Bruxas, é o retrato dessa bruxa contemporânea e caótica. Seus poderes são fortes, mas inconstantes. Quando está ansiosa ou estressada, livros flutuam, janelas quebram, o fogo se acende — mesmo sem ela querer. Ela tenta focar, mas se distrai.
Tenta obedecer, mas questiona. Tenta seguir regras, mas desvia. Sua fala é rápida, sua energia, difícil de conter. Em momentos de hiperfoco (como nas pesquisas acadêmicas), mergulha profundamente, ignorando o mundo ao redor.
Em outros, se perde em pensamentos soltos, ideias desorganizadas e emoções à flor da pele.
O TDAH, especialmente em mulheres, costuma se manifestar assim: impulsividade emocional, dificuldade de manter o foco em tarefas rotineiras, hiperfoco em interesses específicos, fala acelerada, sensação de “ser demais” para o mundo, dificuldade em aceitar hierarquias.
Muitas dessas mulheres foram, por séculos, vistas como histéricas, descontroladas ou perigosas. E não foram poucas as que acabaram rotuladas de bruxas, literalmente.
Outras bruxas da ficção também carregam esses traços. Willow, de Buffy, a Caça-Vampiros, é brilhante, mas perigosa quando está emocionalmente instável. Sabrina, de O Mundo Sombrio de Sabrina, desafia regras constantemente e paga caro por isso.
E nos contos antigos, as bruxas de Salem — muitas das quais provavelmente eram apenas mulheres inteligentes, criativas, com emoções intensas — foram mortas por serem diferentes.

Vale lembrar que, historicamente, comportamentos fora do padrão social feminino eram motivos para perseguição. Mulheres que pensavam diferente, que tinham opiniões, que se recusavam a obedecer ou simplesmente se destacavam eram associadas à bruxaria.
Isso inclui mulheres neurodivergentes que, antes mesmo da ciência ter nome para suas condições, já sofriam os efeitos da exclusão social.
Já os magos, com sua obsessão por conhecimento, seu isolamento e seus modos excêntricos, remetem a um perfil mais analítico e hipercognitivo, também visto em algumas pessoas no espectro.
Eles não se interessam por convenções sociais, mas mergulham profundamente em temas específicos. Têm dificuldade em se adaptar a estruturas sociais convencionais, mas criam verdadeiros universos mentais onde são mestres absolutos.
É o caso dos magos da Congregação em A Descoberta das Bruxas, mas também de personagens como Merlin, Gandalf e até Dr. Estranho, que vivem entre mundos e lógicas muito próprias.
E os lobisomens? Aquela explosão repentina de fúria, a dificuldade de controlar impulsos, o medo de machucar os outros. Pode-se pensar em questões de autorregulação emocional, também presentes tanto em TDAH quanto em TEA.
A ideia de se transformar em algo que não se reconhece pode remeter à sensação de descontrole que muitos relatam durante crises. Em A Descoberta das Bruxas, esse lobo simbólico vive dentro do próprio Matthew, que teme “virar monstro” ao sentir raiva, desejo ou medo. Sua luta é interna. Sua dor é silenciosa.
Importante reforçar: comparar arquétipos fantásticos a características neurodivergentes não é uma tentativa de romantizar o sofrimento dessas pessoas. Não estamos falando de superpoderes. Estamos falando de vidas reais, com desafios concretos.
O autismo e o TDAH não são dons mágicos; são condições neurológicas que afetam diretamente a forma como a pessoa sente, percebe e interage com o mundo.
E muitas vezes, isso vem acompanhado de exclusão, sobrecarga emocional, diagnóstico tardio e sofrimento psíquico.
Mas reconhecer que a cultura, mesmo que inconscientemente, traduziu essas diferenças em personagens poderosos e complexos pode nos ajudar a ver a neurodivergência com mais humanidade e menos julgamento. Pode ser um ponto de partida para empatia e compreensão.
Em vez de enxergar o comportamento do outro como “esquisito” ou “errado”, podemos lembrar que os arquétipos existem por um motivo: eles nos ajudam a nomear o que ainda não entendemos.
E talvez, por trás da máscara do vampiro introspectivo ou da bruxa tagarela, existam apenas formas diferentes — e válidas — de ser.
A fantasia pode ser uma ferramenta para compreender realidades complexas. Ela dá corpo ao que é invisível, voz ao que é calado.
E se usarmos esses arquétipos com sensibilidade, talvez possamos enxergar o que a história tentou esconder: que a diversidade da mente humana é antiga, rica e, acima de tudo, real.
Referências
BRASIL. Ministério da Saúde. Linha de cuidado para atenção à saúde das pessoas com TEA e suas famílias na Rede de Atenção Psicossocial do SUS. 2021.
ABDA – Associação Brasileira do Déficit de Atenção. TDAH: Guia Prático para Profissionais e Familiares. 2020.
JUNG, Carl Gustav. O Homem e seus Símbolos. Nova Fronteira, 2008.
ZILBOVICIUS, M.; MERCADO, C. A.; FERNANDES, F. D. Autismo: Uma abordagem neurobiológica atual. Revista da Associação Médica Brasileira, 2020.
SILVA, A. G.; MATTOS, P. Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade em Adultos: uma revisão. Revista Brasileira de Psiquiatria, 2019.
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