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Por que mulheres religiosas são as que mais sofrem violência doméstica?

Reflexões referente a violência contra a mulher em um caso clínico.
Por que mulheres religiosas são as que mais sofrem violência doméstica

Todas as pessoas que ensinam sobre violência contra mulher (palestrantes, educadores, psicólogos, advogados etc.), chamam a atenção para alguns comportamentos que a mulher jamais deve permitir vindo de um homem.

Se isso acontecer ela está claramente em um relacionamento abusivo, são eles: Proibição da maquiagem, controle do corte de cabelo, controle das roupas, isolamento dos amigos, proibição de trabalhar em determinados lugares, ameaças psicológicas, acusações, fazer sexo sem sua vontade, controle financeiro e etc..

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Toda mulher deveria saber disso, pois está previsto na lei Maria da Penha, mas e quando todos esses abusos não vêm de um homem e sim de uma religião?

O caso de Aline…

Era o último atendimento online do dia, a mulher jovem, de aproximadamente 40 anos na tela do celular a minha frente falava de algum lugar do Brasil.

Era a primeira sessão dela e me apresentei, falei sobre a questão de sigilo imprescindível na profissão e sobre o profissional não fazer nenhum julgamento de valor.

Com a anamnese em mãos fiz a primeira pergunta: Aline*, quantos anos você tem?

E essa foi a única pergunta que fui capaz de fazer. Ela não me respondeu e iniciou: “Estou mal, ele me persegue e precisei chamar a polícia. Foram vinte anos da minha vida, jogado fora!”

Aline precisava muito falar e eu apenas a ouvi. A sessão que normalmente dura 50 minutos com ela durou uma hora e quarenta e só ela falava.

Só a interrompi porque teria que atender outro cliente e marquei de continuarmos no dia seguinte.

A história que ela me conta não é diferente da maioria dos casos que atendo: casamento recheado de traições, humilhações, violência psicológica, financeira, ameaça de morte, violência física e por fim tentativa de estupro.

O diferencial da história da Aline e que me fez querer chorar, é que, além de ter sobrevivido a esse casamento falido e a dois cânceres, ocorre que por vinte anos ela pediu ajuda em sua igreja para cessar a violência que sofria.

Aceitando violência em nome da fé

Ela pedia ajuda aos pastores e ouvia que a culpa era dela, porque ela deveria orar com mais fé para que Deus mudasse o marido.

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A “mulher sábia edifica a própria casa”, e se o marido buscava outras mulheres fora de casa é porque ela não estava sendo boa o suficiente para ele!

A dor que essas palavras saiam dos seus lábios me atingiu em cheio, por um processo de identificação com minha própria história.

Eu já sabia que teria que levar esse caso para minha supervisão e para minha psicanalista, afim era preciso conseguir ajuda-la sem contaminar o tratamento com minhas próprias emoções.

Com o passar dos dias consegui ajudar a Aline a enxergar como se livrar da culpa que carregava, mas o triste é que essa não é uma história isolada.

Apesar de os evangélicos representarem apenas 30% da população do Brasil, 40% das denúncias de violência doméstica é protagonizada por mulheres evangélicas, e esse número é muitíssimo maior porque elas são desencorajadas a denunciar em nome da fé.

A história da Aline se repete diariamente por todo o país, mulheres são culpabilizadas pelo que acontece dentro do lar e desestimuladas a buscar a policia por vergonha, medo, dependência financeira ou ainda por obrigatoriedade do “perdão”.

Uma boa parte das igrejas evangélicas, numa interpretação literal e isolada da Bíblia Sagrada ensinam as mulheres que Deus deseja que elas sejam submissas a seus maridos.

Ainda são ensinadas desde meninas a obedecerem ao varão e que o ato de perdoar é sagrado. Condicionadas a respeitarem a fé, a perdoarem para serem perdoadas por Deus, elas são presas fáceis de agressores sem escrúpulos.

Assim, depois de uma agressão é só o agressor pedir perdão em nome de Deus, ou dizer que Deus vai fazer uma obra de redenção e mudar ele.

Escrituras & interpretações que aprisionam

Dessa forma a mulher sente que não tem escapatória a não ser perdoar. “Oferecer a outra face”, e esperar o milagre acontecer se quiser obter o perdão divino, porque é “perdoando que serás perdoado”.

Mulheres que crescem recebendo esse tipo de educação ou vivenciam violência entre os pais são propensas vivenciar situações de abuso no relacionamento.

Dessa maneira sempre serão presas fáceis de homens abusadores. Esses homens podem ser violentos por características psicológicas, hereditárias, ou por condicionamento.

Afinal aprenderam que são “a cabeça da casa”, o único responsável por todas as decisões e que para a mulher cabe apenas obedecer a suas ordens e ser submissa.

Essa submissão pode ser aplicada a diversas situações.

Até mesmo uma simples opinião pode ser interpretada pelo abusador como uma afronta que lhe concede o “direito” de corrigir sua esposa com violência psicológica em nome de Deus ou até mesmo física.

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Cresci em uma igreja assim e durante a vida toda ouvia do pregador que o “homem é a cabeça da mulher e Cristo a cabeça do homem e Deus a cabeça de Cristo. Qualquer mulher que desonrar o seu próprio marido estaria desonrando a Cristo e a Deus”.

‘Desonra’ aqui neste contexto era transmitido no sentido literal de obediência cega.

Depois de adulta eu percebi alguns trechos que eu lia na bíblia com explicações contrarias a esse pensamento.

Principalmente sobre a salvação ser individual, que Deus não faz acepção de pessoas por causa do gênero e que ama a todos igualmente. Isso não justificava a ideia que a mulher não tem vontade própria e que é inferior ao homem.

Ao contrário, eu entendia que Deus criou a mulher da costela, justamente para andar lado a lado com o homem como igual, como companheira.

Teria sido muito diferente para mim, para a Aline, para as Marias, Saras, Rutes e milhares de outras meninas se tivéssemos ouvido desde criança que nós mulheres também somos joias do Senhor.

E, que quem toca em uma nós, toca na menina dos olhos de Cristo e que em caso de violência, devemos sim, orar a Deus, perdoar, mas chamar a polícia primeiro.

Ainda temos esperança da mudança desse quadro triste, de olho nessas estatísticas e nesse sofrimento.

Algumas iniciativas tem dado certo no sentido de conscientizar essas mulheres a não aceitarem tratamento sub-humanos em nome de não desagradar a Deus.

“Perdoar não significa que o agressor não deva necessariamente ser punido por seus atos. Devemos separar o que é espiritual do que é caso de polícia, porque o homem é machista, mas Deus não” diz o pastor Marcos Cruz (Assembleia de Deus- Ministério de Interlagos, São Paulo) enquanto traz palestrantes para dentro de seus cultos para falar sobre o combate à violência dentro dos lares evangélicos e assim conscientizar homens, mulheres e crianças que violência contra a mulher é caso de justiça e não de fé.

*Utilizado nome fictício

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Sobre o autor(a)

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Luciana Santos

Psicóloga e Analista Comportamental apaixonada por pessoas e seus comportamentos anseia por levar a conhecimento ajudando as pessoas a resolverem seus problemas diários.
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